Nos últimos anos Uberaba vem recebendo um número significativo de pessoas que encontram sua origem em outras partes do mundo. Muitos desses novos habitantes chegaram de países que possuem a religião Islâmica e trazem consigo diferenças culturais que despertam muita curiosidade. Infelizmente, a diversidade também provoca, em alguns, preconceito e discriminação, o que, na maioria das vezes é motivado pela falta de informação de qualidade. A coluna “Acidez Urbana!” traz hoje, a oportunidade para o leitor da Folha de Uberaba de conhecer um pouco mais sobre a religião que já é a segunda maior do mundo em número de fiéis, reunindo quase 2 bilhões de pessoas. O entrevistado desta terça-feira é o sheik Rodrigo Jalloul (foto), líder de um Centro islâmico em São Paulo, capital.
Foto: Reprodução/https://twitter.com/sheikhrodrigo
François Ramos (FR) – Fale um pouco de você. Quem é o sheik Rodrigo Jalloul?
Sheik Rodrigo Jalloul (SRJ) – Em nome de Deus, clemente e misericordioso, eu sou o sheik Rodrigo Jalloul, sou líder religioso do Centro Islâmico do bairro da Penha, em São Paulo. Descendente de libaneses e espanhóis (linhagem materna), sou formado na República Islâmica do Irã. Venho de uma família misturada de mulçumanos sunitas, por parte de pai e católicos por parte de mãe. Cresci em uma base mais católica e dos 15 para os 16 anos passei a seguir o Islamismo, religião de influência paterna, por questão de estudo.
FR – Em Uberaba, o Islamismo é uma religião pouco conhecida, o que pode levar a grandes equívocos. O senhor poderia nos apresentar quais são as bases da crença mulçumana?
SRJ – O Islamismo é pouco conhecido em Uberaba e em muitas outras cidades brasileiras, apesar da comunidade árabe presente no Brasil ser grande. Esse desconhecimento infelizmente permite que a imagem que muitas pessoas tenham seja aquela extraída de internet, a imagem da mídia, aquela que é vinculada, por exemplo ao Estado Islâmico, ao 11 de setembro. Isso leva a uma associação equivocada da religião a coisas ruins. A falta de conhecimento leva também as pessoas a confundirem o islamismo com a cultura árabe, mas é preciso lembrar que a maioria dos mulçumanos não são árabes. Essa visão também é um complicador, pois as vezes a cultura árabe parece muito homofóbica, machista, agressiva talvez, e, isso passa uma imagem muito negativa. O que eu posso dizer, é que a comunidade libanesa, em especial, que representa a maior parte de árabes que tem no Brasil, se preocupam muito em tentar, dentro de um país não islâmico e nem árabe, manter a cultura árabe, onde prevalece muito a religião. Por causa disso, muitas das pessoas ao verem o comportamento de um árabe já liga ao Islamismo automaticamente. Mas é preciso lembrar que não é porque a pessoa nasceu em um país de maioria católica, como o Brasil, que ela é católica, assim como não é porque alguém se declara católico que ele é praticante, que tudo que ela faz é relacionado aos pensamentos da Igreja Católica. Neste sentido, o Cristianismo e o Islamismo são 100% iguais, o que significa que nem todo árabe é mulçumano e nem todo ato de um mulçumano representa o Islã.
O Islã tem bases importantes como a caridade, o respeito à vida. O profeta Mohammed inclusive dizia que quem salva uma vida, salva a humanidade. Ele também advertida que “infeliz aquele que dorme tranquilo, enquanto sabe que o seu vizinho está passando fome”. Então, existem ensinamentos muito bonitos dentro do Islã, que, pode-se dizer, baseia-se em crença e práticas. A crença, se caracteriza pela convicção na existência de um Deus único, ou seja, é uma religião monoteísta, que acredita no mesmo Deus de Abraão, Moisés, Noé, de Jesus e Mohammed. Então, Deus é único, com uma mensagem universal, que enviou 124 mil profetas e mensageiros no decorrer da história da humanidade, pra nos esclarecer sobre a importância do ser e agir humano. Assim, o Islamismo frisa muito a crença e a prática, que é o quê? Nós seremos julgados pelos nossos atos, então a religião adverte para o necessário cuidado com as nossas atitudes para que não tenhamos um final infeliz. Se Deus é onipotente e não precisa de nada, na crença, a oração e o jejum servem pra nos aproximarmos dele. Na prática, o que mais agrada a Deus é você estar do lado dos pobres, ajudar aos necessitados, exercer a caridade, dar atenção ao irmão que precisa, ajudar alguém que está apertado financeiramente, conversar com uma pessoa que precisa desabafar, enfim, existem várias formas de se praticar a palavra de Deus. Afinal essa palavra tem como fim humanizar, o que inclui, por exemplo, o respeito as plantas, aos animais, ao próximo. Tudo tem direito dentro do Islamismo. Desta forma, estas são as bases principais do Islã, a crença, entre jejum, oração, peregrinação, monoteísmo, a ressureição, o juízo final, ser julgado pelas suas atitudes e também a parte da prática, que inclui a caridade, o que você vai fazer, as boas e as más ações. E tudo isso é baseado no livro sagrado, o Alcorão.
FR – O profeta Mohammed (ou Maomé, como é chamado no Brasil), líder maior da cultura islâmica, deixou, como acontece no Cristianismo, mandamentos a serem observados pelos hoje, aproximadamente, 1,9 bilhão de mulçumanos espalhados pelo mundo?
SRJ – Jesus deixou muitos ensinamentos e o profeta Mohammed também. Eu vou dar exemplos da história para facilitar o entendimento. Muita gente acredita que os mulçumanos são machistas, que para eles a mulher não tem voz, que ela deve ficar trancada em casa e ser submissa ao homem. Isso talvez seja cultura árabe, de alguns países. O profeta Mohammed nasce órfão de pai, depois perde a mãe muito cedo, é amamentado por uma beduína (nômade) do deserto, posteriormente por outra mulher, aos 25 anos de idade ele trabalha para uma mulher com 40 anos, viúva, com quem depois viria a se casar. Na cultura árabe eles não aceitavam casamento com viúva ou mulher divorciada, pois elas não poderiam ser esposadas, somente mulheres virgens. Então, o profeta Mohammed quebra essa barreira.
Outra coisa que os árabes tinham, por exemplo, era a convicção de que a mulher não dá descendência na família. O profeta casa-se com uma mulher mais velha, e só tem uma filha com ela, chamada Fátima. Essa mulher, que era uma empresária rica, investe no Islamismo acreditando no profeta Mohammed, que usa esse recurso para comprar escravos dos árabes. Os negros da África, que eram escravizados pelos árabes, eram comprados pelo profeta, que sem falar de religião, simplesmente os libertava. Quando Mohammed constrói a primeira Mesquita, é um africano, chamado Bilal, que sobe no minarete e faz o primeiro chamado da oração da história do Islã, pros mulçumanos se aproximarem para oração. Em prática, o profeta Mohammed defende muito a questão do órfão, do refugiado. Aliás, ele mesmo foi um refugiado, queriam matá-lo na cidade de Meca (onde nasceu) e ele migrou para Medina (no lado ocidental da Arábia Saudita). Suas lições também incluem o respeito à mulher, o direito de trabalho da mulher, o papel fundamental que a mulher teve dentro da religião, que a filha mulher não é diferente do filho homem (têm direito à igualdade), contemplam enfim, uma visão muito humana, fraterna, de se importar com a situação do seu semelhante, de exercer a caridade, de cuidar dos animais, das plantas, não oprimir a nada e ninguém, nem a ti mesmo.
FR – Qual é a visão do Islamismo sobre Jesus Cristo?
SRJ – Jesus é considerado um profeta dentro do Islã. Ele é filho da virgem Maria, com nascimento milagroso, homem escolhido por Deus. Chamamos, às vezes, de espírito de Deus, mas não com a finalidade dele ser o próprio Deus, e sim, simbolicamente como um grande representante de Deus, porque não teve pai biológico: Deus deu o sopro na virgem Maria e assim ela tem Jesus. Acreditamos que ele é um profeta que está vivo. O profeta Mohammed, Moisés, Abraão, todos morreram, mas o profeta Jesus está vivo e ele volta no fim dos tempos. Assim como os cristãos aguardam a volta de Jesus, os mulçumanos também o esperam, com a diferença de que ele é um profeta e nós não acreditamos que ele foi crucificado. Acreditamos que ele foi elevado aos céus ocultamente e na hora certa, que deus determinar, ele vai aparecer para estabelecer justiça na Terra.
FR – É verdade que todos os Muçulmanos devem ir até Meca (Hajj) e aos locais sagrados vizinhos ao menos uma vez em suas vidas? Para o brasileiro, por exemplo, esta é uma viagem de custos proibitivos para quem ganha um salário mínimo. O que acontece se o fiel, ao longo de sua vida não consegue realizar esta peregrinação?
SRJ – A peregrinação é um dos deveres de todo mulçumano, desde que ele tenha condições financeiras. Deus não dá dificuldade. Existindo o recurso o Hajj se torna condição obrigatória para ele. Uma pessoa que não possui a condição financeira, eu mesmo ainda não tive recurso para ir fazer a peregrinação, não tem o Hajj como uma situação obrigatória. Existe a possibilidade do Hajj ser concedido por doação por alguém que já foi e goza de boa situação financeira e oferece a oportunidade para alguém carente destes recursos. Importante lembrar também, que hoje isso depende de uma série de outros fatores, como visto, por exemplo. A pessoa às vezes possui condições econômicas de peregrinar, mas não consegue a autorização para entrar no país estrangeiro. Deus sabe de todas as coisas! Entra aí a questão do livre arbítrio dentro do Islã e da consciência própria que todo mulçumano deve ter.
A grande Mesquita de Meca – Al-Masjid al-Ḥarām
Foto: Reprodução/https://pt.wikipedia.org
6 – No livro “Intrigas no Reino de Allah”, escrito pelo senhor e por Renatho Costa, percebe-se a existência de um comportamento contraditório por parte de alguns líderes muçulmanos. Na esfera pública, falam sobre a paz e defendem a causa palestina, mas, infelizmente discriminam e perseguem os não nascidos muçulmanos. Esta realidade constitui impeditivo para o crescimento do Islamismo no Brasil?
SRJ – Essa questão do elitismo, da raça, de que como a religião islâmica foi revelada no idioma árabe, então os árabes são um povo privilegiado, bem, eu não enxergo dessa forma. Talvez Deus tenha feito a revelação em árabe, naquela região, que é onde tinha problemas (tem problemas até hoje), porque que fosse em outra língua possivelmente não teria sido aceita como a Palavra de Deus. Destaco que esta é apenas uma visão, não significa que seja a verdade. Mas o que a gente percebe no Brasil, e em outros países também, é que tem uma disputa territorial, de domínio da religião, muito grande. O sheik do Irã vem pra cá, tem suas ideologias e ele acha que é a certa; o sheik do Egito, o sheik do Líbano, mesma coisa. Então, o Islã é um só, mas as pessoas têm suas culturas, seus costumes, e, muitas das vezes elas querem implementar isso. Além disso, muitos sheiks que vêm pra cá trabalhar recebem dinheiro de alguma instituição dos países deles, então eles são obrigados a enviar o quê? Relatórios de andamento do trabalho, do que tem feito, pra justificar estadia, salário e tudo mais. Por este motivo, é muito importante, frisar que essas pessoas vão acabar enfraquecendo um pouco o lado religioso e focando muito no lado da sobrevivência do trabalho. Então, surgem ataques e a dificuldade da comunidade mulçumana no Brasil aceitar que existe um sheik brasileiro, que, por mais que ele seja descendente de libaneses, nasceu no Brasil, tem cultura brasileira, gosta de “arroz com feijão”. É difícil eles aceitarem porque, muitas vezes, parece que a cultura pesa mais que a própria crença. O Islamismo deixa muito claro que não há diferença de um árabe para um não-árabe. Mas, muitos não encaram desta forma, o que leva a ataques. Eu percebi que os meus problemas maiores, dentro do Islamismo, estão dentro da minha comunidade. A partir do momento em que eu coloquei um turbante, me tornei um sheik legalmente, diplomado, e isso me dava uma autonomia e um poder dentro do meu país também, percebi que quem me atacava ou ataca são os próprios sheiks iranianos, da onde eu estudei. Parece ser meio contraditório, mas essas brigas de líderes religiosos, quem está de fora dos bastidores e não conhece, acaba sofrendo interferência em sua fé. Essa “briga” desanima as pessoas da fé. Afinal, elas vêm buscar espiritualidade em, supostamente, um líder espiritual que está totalmente desequilibrado, não está espiritualizado e está focado em conflito de concorrência, enfim…isso é lamentável e acaba tirando um pouco a fé das pessoas.
FR – Uma em cada quatro pessoas no mundo é muçulmana, segundo estimativa da Federação das Associações Mulçumanas do Brasil. No país, já são mais de um milhão de muçulmanos, com 90 mesquitas e salas de oração, além de 80 centros islâmicos. Contudo, isso não impede a associação, pelo leigo, da religião com o terrorismo. Como lidar com esse preconceito?
SRJ – A questão do preconceito, às vezes, parte de dentro da própria religião, por questão de raça, um querer dominar o outro, mas outras vezes é fruto da falta de informação. No Brasil, hoje, quando se fala em Islamismo, profeta Mohammed, mulçumano e árabe, só vem coisas negativas na cabeça das pessoas. Elas automaticamente mentalizam terrorismo, Saddam Hussein, Osama bin Laden, 11 de setembro, enfim, são essas as coisas que vêm na mente. E não dá para criticá-las por isso, porque a informação infelizmente chega carregada por fake news e, na realidade desinforma. Então, as pessoas estão habituadas a ter esse conceito. Eu sempre falo para os sheiks sobre isso, porque eles precisam acordar no caso, não somente para estarmos no Brasil e praticarmos a religião, é preciso também ter um compromisso com o povo brasileiro de ensinar o correto, de mostrar o caminho da verdade, de mostrar quem são os mulçumanos. Isso é uma obrigação pra nós, mas os sheiks ainda não encaram dessa forma. Só querem pregar o islã e converter o povo. Mas enquanto essa imagem tão negativa do Islamismo estiver presente, na minha visão isso é praticamente impossível. As pessoas vão entrar na religião por uma porta e futuramente sair por outra. Infelizmente a tendência é essa. Conscientizar é preciso! Eu, mesmo, muitas vezes, no meu trabalho, tive contato com pessoas que falaram para mim que tinham uma visão dos mulçumanos, do Islamismo, totalmente errada, que mudou depois que eu conheci o senhor. As pessoas não têm informação de qualidade sobre a religião islâmica. Esse fato transforma nossas atitudes na melhor forma de apresentá-la. Eu acredito muito que o Islamismo, por mais que já tenha muito mulçumano no Brasil, boa parte é descendente de árabes que vieram pra cá, não há um número significativo de brasileiros natos que está se convertendo. A liderança deveria estar mais preocupada em apresentar a religião do que pretender a conversão sem conhecimento. Sem conhecer como esperar que recebam bem? As pessoas me tratam muito bem como sheik no Brasil, mas não pelo status religioso, mas pela pessoa que eu sou e passei a representar pelos meus anos de trabalho duro e persistência. Muitas vezes sem apoio, só fazendo a minha parte com Deus. Ele vai dando a vitória e as pessoas vão reconhecendo isso, elas não são más, incapazes de enxergar a verdade. Por isso, acredito muito que esse trabalho todo que eu faço, que é islâmico, em primeiro lugar, além de ajudar muita gente, indiretamente ajuda a imagem do Islã, sem converter ninguém, sem passar por cima do direito religioso de ninguém, traz um benefício muito bom pra nossa comunidade.
Centro Islâmico da Penha – São Paulo/SP
Foto: Divulgação/Sheik Rodrigo Jallou
FR – O senhor foi o primeiro brasileiro a se formar nas rígidas escolas religiosas xiitas do Irã. Existe alguma relação dos xiitas com o Estado Islâmico? Qual a diferença entre xiitas e sunitas?
SRJ – Não existe relação nenhuma do Islã xiita com o Estado Islâmico, nem do Islã com o Estado Islâmico. Apesar de que os seguidores do Estado Islâmico se denominam mulçumanos sunitas e não xiitas. Porém, o Estado Islâmico não tem nada de islâmico. É até ofensivo para os próprios sunitas, eles sofrem quando as pessoas ligam o Estado Islâmico como sunita. Na realidade, essa é uma autodenominação. Seja sunita ou xiita, nós sabemos que as atitudes do Estado Islâmico não são práticas do islamismo. Mas, por eles se autodenominarem sunitas ou mulçumanos, isso acaba ferindo um pouco a imagem do Islamismo. Algo islâmico que destrói o Islã é, no mínimo contraditório.
A diferença entre sunitas e xiitas, na verdade, é pequena, enquanto os primeiros acreditam que depois da morte do profeta Mohammed, os companheiros dele eram as pessoas mais indicadas para guiar a comunidade mulçumana, que, portanto, essa deve ser uma indicação do homem. Assim, os sunitas são aqueles que creem nos companheiros dele para difundir o Islã. Já os xiitas acreditam que após a morte do profeta, sua família, que foi indicada por Deus, para dar continuidade na propagação da Palavra.
FR – Temos acompanhado ações desenvolvidas pelo senhor, em favor do povo de rua de São Paulo. Qual é a diretriz do Islamismo em relação às minorias em situação de vulnerabilidade social e econômica?
SRJ – A palavra de Deus, que é uma só, como a gente já falou, de um Deus único, fala muitas vezes da importância do amparo aos pobres, aos rejeitados, aos mais fracos, oprimidos. Ele sempre se posicionou sobre a importância dessas pessoas terem seus direitos preservados. Direito a comida, a bebida, a educação, direito a vida. Esses direitos, no sistema do homem, que é extremamente injusto ao definir quem vai ter acesso eles ou não, se distancia da Palavra. O Islamismo acredita que o único governo perfeito é o de Deus. Nós, então, precisamos tentar fazer a nossa parte aqui. A religião, pelo que eu estudei, tem a palavra de Deus para servir e não para ser servida. Então, eu mesmo sou muito simples na minha rotina: limpo minha casa, cuido das minhas coisas e faço meu papel religioso com Deus. Essa questão do auxílio aos pobres, não significa que o sheik Rodrigo Jalloul que é bonzinho, pois isso é um dever de todo mulçumano, por ordem de Deus, ao respeito da caridade. Tem diversos versículos no Alcorão sagrado, nos quais Ele fala para os mulçumanos da importância da caridade, de ajudar o próximo, de dar a mão para os irmãos. Tudo isso, sem distinção de crença, de cor… Deus não coloca rótulos nas pessoas. A humanidade é que coloca, pra julgar, classificar e decidir se elas são dignas ou não, se têm direitos ou não. Isso, é claro, não agrada a Deus! O que eu pratico é um papel que todo líder religioso, que entende de verdade a palavra de Deus, tem que fazer. A Palavra nos convida pra isso: convida para a adoração a Deus e para o nosso momento de espiritualidade com Ele, mas também nos conclama a não fechar os olhos para a sociedade. O Islamismo fala de cuidar do irmão, cuidar do próximo, cuidar das vidas (o que inclui plantas, animais, tudo).
FR – Algumas de suas ações vem sendo desenvolvidas em conjunto com o padre Júlio Lancellotti. Parece que na capital paulista alimentar o carente virou motivo de animosidade para muitos. A exemplo do padre católico o senhor já sofreu alguma ameaça em consequência do agir solidário e fraterno?
SRJ – O Islamismo fala de cuidar do irmão, cuidar do próximo, cuidar das vidas (o que inclui humanos, plantas, animais, enfim, tudo). Cumprindo a Palavra, eu faço ações sociais desde 2010, e foi no meio dessa caminhada que eu encontrei o padre Júlio Lancellotti, já o conhecia de nome, nunca fiquei católico e nem ele mulçumano, e percebi que a mesma coisa que ele vivia eu compartilhava, ou procurava viver, me aperfeiçoar e essa história acabou unindo a gente. Aprendi muito e aprendo com ele. Ele é um homem que dedica a vida aos pobres. Eu vejo a preocupação que ele tem quando faz frio, quando chove, quanto a onde os irmãos de rua vão dormir, como vão fazer, se tem água pra eles beberem. Tem coisas que ele cobra da Prefeitura, outras ele mesmo vai e faz. É algo totalmente religioso e humano! O amor e a caridade não são dimensões religiosas, são dimensões humanas, então um dever de todos nós. O que a gente tenta fazer é cumprir com a nossa obrigação. Automaticamente isso espelha na religião também, porque foi o ensinamento de todos os profetas da história. Hoje eu tenho os trabalhos do Centro Islâmico, que não são trabalhos da Paróquia, que são desenvolvidos pelo padre Júlio Lancellotti, pela Pastoral do Povo de Rua, pela Diocese de São Paulo, mas nós nos amparamos um no outro, nos ajudamos da forma que dá, sempre assim um com o outro. E como eu falei, não fiquei católico por isso e nem ele mulçumano. A gente usa da religião como um instrumento para servir na prática, para humanizar, indo pra rua. Não adiante eu fazer um discurso bonito, religioso, de amor, caridade e fraternidade, e, eu não olhar para os pobres. Acho que essa presença nossa na rua, na humildade, faz a diferença, em especial para aqueles que já não tem nada. A gente convive com eles, sem pregar religião, buscando somente acolher da forma que são, ouvi-los e entendê-los.
Já quanto às ameaças, o padre Júlio as sofre direto. Ele não é uma pessoa conveniente pro sistema, pro governo, pelas posições que assume. Eu, ameaça de morte nunca sofri, mas já fui hostilizado por carros que passam pelas ruas, xingam a gente porque estamos alimentando os irmãos de rua, falam que estamos dando de comer a vagabundo, alimentando o crime, enfim, pessoas que julgam equivocadamente as nossas ações. Não faltam pessoas que falam que vão destruir a gente, já teve casos da polícia multar, propositalmente, o nosso carro porque estávamos dando comida para morador de rua (uma tentativa de inibir o trabalho), porque os enxergam e julgam como criminosos. Muitas das vezes são ataques indiretos, mas que acontecem, mas a gente não desanima, segue firme na missão.
Foto: Divulgação/Denis vieira/Centro Islâmico Fátima Zahra